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Lesão Celular Isquémica

A lesão celular isquémica é a lesão de uma célula que resulta da redução do fluxo sanguíneo. O processo envolve hipoxia por interrupção do fornecimento de sangue, falta de nutrientes e acumulação de metabolitos tóxicos. Os danos celulares podem ser reversíveis (a função regressa quando o fluxo sanguíneo recomeça) ou irreversíveis (o limiar de reversibilidade já foi ultrapassado). Apesar de o fluxo sanguíneo poder ser restaurado e permitir a recuperação celular, é possível haver lesão de reperfusão em tecidos previamente isquémicos. Ao produzir sobrecarga de cálcio, stress oxidativo e mecanismos inflamatórios envolvendo células imunes, citocinas e o sistema de complemento, a reperfusão também pode levar à morte celular (muitas vezes por necrose). A suscetibilidade à isquemia é afetada por diferentes fatores, que incluem uma atividade metabólica elevada, a presença de circulação colateral, áreas com duplicação do suprimento sanguíneo e a magnitude da isquemia. O órgão mais suscetível à isquemia é o cérebro. Outros órgãos suscetíveis incluem o coração, os rins, o fígado e o intestino grosso.

Última atualização: Jul 12, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

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Descrição Geral

Definição

A lesão celular isquémica é um dano resultante de uma diminuição do fluxo sanguíneo, que leva à hipoxia, à falta de nutrientes e à acumulação de metabolitos tóxicos.

  • Hipoxia: diminuição do fornecimento de oxigénio (o fluxo sanguíneo mantém-se frequentemente)
  • Lesão por reperfusão: dano nos tecidos causado pela restauração do suprimento sanguíneo após um evento isquémico

Lesão celular

Num contexto de lesão celular, ou as células não se conseguem adaptar ou excede-se a resposta adaptativa máxima a estímulos fisiológicos ou patológicos.

A isquemia e a lesão de reperfusão são duas causas de estímulos que levam à lesão e à morte celular.

Outros estímulos danosos incluem causas físicas como traumatismos ou radiação, produtos químicos, perda de nutrientes críticos e mutações.

Fases de lesão e morte celular:

  • Lesões reversíveis: danos na célula → depleção de ATP → fuga de iões → desequilíbrio iónico → edema da célula e dos organelos
  • Lesão irreversível:
    • O limiar de reversibilidade para a célula foi ultrapassado e não é possível restaurar a função celular.
    • A célula fica condicionada a morte celular.
  • Morte celular (através de processos como necrose e apoptose)

Morte celular

Necrose (causa mais comum):

  • Não-fisiológica
  • Morte celular descontrolada após lesão irreversível
  • Os danos da membrana provocam um influxo de cálcio → edema dos organelos → libertação de enzimas digestivas, que leva a:
    • Picnose: encolhimento nuclear
    • Cariorrexis: fragmentação nuclear
    • Cariólise: desvanecimento nuclear

Apoptose (pequena percentagem):

  • Morte celular programada
  • Ativada pela libertação de moléculas pró-apoptóticas das mitocôndrias (resposta fisiológica)
  • Vias extrínsecas:
    • Fas (CD95) → Fas ligando (FasL)
    • Fator de necrose tumoral (TNF)-α → recetor de TNF 1 (TNR1)
  • Via intrínseca (via mitocondrial):
    • Danos no DNA → p53 ativado → paragem do ciclo celular → p53 ativa a apoptose
    • ↑ proteínas proapoptóticas (por exemplo, BAK e BAX), ↓ proteínas anti-apoptóticas (por exemplo, Bcl-2) → mitocôndrias libertam citocromo c
    • O citocromo c liga-se à protease-ativadora de apoptose (APAF)-1 → ativação de caspase e endonuclease
  • Via de perforina/granzima:
    • Utilizada pelas células T citotóxicas e pelas células NK (natural killer)
    • A perforina cria poros em células-alvo, que permitem a entrada de granzimas tipo caspase.

As células mortas são substituídas por fosfolípidos e mielina, resultando na clarificação ou fagocitose por macrófagos.

Differences between apoptosis and necrosis at structural level

Diferenças entre a apoptose e a necrose, a nível estrutural

Imagem por Lecturio.

Lesão Isquémica

Isquemia

As lesões por isquemia podem dever-se a:

  • ↓ Fornecimento de sangue: obstrução arterial mecânica (mais comum):
    • Aterosclerose: acumulação de placa nas paredes arteriais
    • Tromboembolismo: bloqueio de um vaso sanguíneo por um coágulo embolizado de outra local do corpo
  • ↓ Drenagem venosa sanguínea: o fluxo venoso para:
    • Trombose venosa profunda: coágulo de sangue nas veias profundas
    • Doença venosa periférica: estenose venosa progressiva
  • Choque:
    • Distúrbio que ameaça a vida devido à falta de fluxo sanguíneo
    • 4 tipos principais:
      • Hipovolémico: ↓ volume intravascular (por exemplo, perda de sangue)
      • Cardiogénico: ↓ função do ventrículo esquerdo (por exemplo, insuficiência cardíaca)
      • Distributivo: séptico (de sépsis), neurogénico (por exemplo, lesão da medula espinhal) ou anafilático
      • Obstrutivo: perda de débito cardíaco (por exemplo, pneumotórax de tensão/tamponamento ou embolismo pulmonar)

Mecanismo de lesão

  • ↓ Disponibilidade de oxigénio (interrupção do metabolismo aeróbio) → produção reduzida de ATP → falência de sistemas dependentes de energia:
    • A bomba Na+-K+ (Na⁺, K⁺-ATPase) da membrana plasmática entra em falência → o sódio entra na célula → edema celular
    • O metabolismo anaeróbio compensa a perda de ATP → depleção de glicogénio → ↑ ácido lático → ↓ pH intracelular → enzimas afetadas
    • Enzimas danificadas levam à redução da síntese proteica → destacamento dos ribossomas
  • Alterações microscópicas:
    • Perda de microvilosidades e formação de “bolhas” no citoplasma e na membrana celular
    • Edema da célula e dos organelos
  • As células começam a perder funcionalidades.
  • ↑ Concentrações intracelulares de água, sódio e cloreto, mas potássio
  • Todas as alterações são reversíveis se a perfusão e a oxigenação forem restauradas.
  • Se a isquemia persistir, o tecido sucumbe a lesões irreversíveis e à morte.

Lesão de Reperfusão

Reperfusão

  • Restauração do fluxo sanguíneo após um evento isquémico
  • Pode alcançar-se recuperação (especialmente com lesões reversíveis).
  • Pode paradoxalmente agravar a lesão e levar à morte celular → lesão de isquemia-reperfusão:
    • A reperfusão pode exacerbar os danos e danificar órgãos distantes quando são libertados mediadores para a corrente sanguínea.
    • Uma consideração clinicamente significativa no tratamento no enfarte do miocárdio e do acidente vascular cerebral

Mecanismo de lesão

A perfusão é restaurada, o que traz vias prejudiciais:

  • Stress oxidativo: ↑ produção de espécies reativas de oxigénio (ROS) ou radicais livres (moléculas com um eletrão não emparelhado na órbita externa):
    • Produzidas a partir de leucócitos e de células danificadas
    • ↑ Devido aos danos mitocondriais e à incapacidade de reduzir o oxigénio (compromisso dos mecanismos antioxidantes pela isquemia)
  • Sobrecarga de cálcio intracelular:
    • ↑ Cálcio → abertura do poro de transição da permeabilidade mitocondrial (mPTP) → depleção de ATP
    • ↑ Cálcio → enzimas celulares (por exemplo, protease, fosfolipase, ATPase, endonuclease) → danos membranares e nucleares
  • Leucócitos e citocinas → recrutam mais células imunitárias → ↑ inflamação (“inflamação estéril”)
  • Ativação do sistema de complemento → proteínas do complemento ligam-se aos tecidos isquémicos com anticorpos → ↑ inflamação

A combinação dos mecanismos induz:

  • Danos no DNA, nas proteínas estruturais e nos lípidos
  • Ativação adicional de cascatas pró-inflamatórias e pró-trombóticas

A arquitetura celular é perdida e segue-se a morte celular.

Alterações celulares e respostas adaptativas nos danos celulares isquémicos

Fluxograma que resume os principais eventos patológicos que contribuem para os componentes de isquemia (painel superior) e de reperfusão (painel médio) da lesão tecidual:
Na isquemia prolongada, a hipoxia leva à depleção de ATP e à redução do pH intracelular (a partir da acumulação de lactato). Os mecanismos de transporte de iões dependentes de ATP tornam-se desorganizados, causando sobrecarga de cálcio celular, edema/ruptura, e morte.
Quando os níveis de oxigénio são restaurados (reperfusão), geram-se espécies reativas de oxigénio (ROS). Também ocorrem alterações pró-inflamatórias: Os neutrófilos infiltram-se nos tecidos isquémicos e agravam a lesão isquémica. Os eventos patológicos levam à abertura do poro de transição de permeabilidade mitocondrial (mPTP) na membrana mitocondrial interna, o que permite a passagem de moléculas para as mitocôndrias e afeta ainda mais a produção de ATP.
PFK: fosfofrutocinase

Imagem por Lecturio.

Relevância Clínica

Danos isquémicos

  • Enfarte: área de células necróticas num órgão, decorrente principalmente de hipoxia e isquemia:
    • Enfarte vermelho ou “hemorrágico”:
      • Afeta órgãos com suprimento de sangue múltiplo ou com parênquima pouco firme, que permite que o sangue extravaze para o tecido (por exemplo, os pulmões)
      • Enfartes venosos: a veia está bloqueada, mas a artéria fornece sangue.
      • Lesão por reperfusão: a restauração do fluxo sanguíneo causa extravazamento de sangue através dos vasos danificados.
    • Enfarte pálido/branco ou “anémico”: lesão de órgãos com um suprimento arterial único ou um parênquima sólido (por exemplo, rim, coração)
  • Tempo de tolerância isquémica: tempo para desenvolver danos irreversíveis nos tecidos após uma lesão isquémica:
    • Cérebro:
      • O órgão mais suscetível à isquemia
      • O que demora menos tempo antes que ocorra lesão irreversível
    • Os órgãos mais suscetíveis à redução do suprimento de sangue após o cérebro: o coração/miocárdio é o 2º e os rins são o 3º.
    • Tanto a pele como o músculo esquelético toleram períodos de isquemia mais longos:
      • Muitas vezes visto na aplicação emergente de torniquetes (por vezes durante horas) com poucas lesões nos tecidos
      • A libertação (após as primeiras 2 horas) seguida da reaplicação da compressão produz lesões mínimas.
  • Anatomicamente, alguns órgãos têm áreas de irrigação dupla (zonas de fronteira):
    • As regiões têm suprimento de sangue duplo, mas estão localizadas no ponto mais distal das artérias.
    • Suscetíveis a isquemia

Cérebro

  • Com alta atividade metabólica e baixas reservas de carboidratos, o cérebro tem a maior suscetibilidade à isquemia.
  • A isquemia ocorre quando um trombo ou um êmbolo (AVC isquémico) reduz o fluxo sanguíneo:
    • A sobrevivência do tecido depende de:
      • Circulação colateral
      • Duração da isquemia
      • Grau e rapidez da interrupção do fluxo sanguíneo
    • Os neurónios morrem em 5 minutos no caso de bloqueio completo.
  • Áreas de suprimento duplo:
    • As zonas de fronteira entre territórios arteriais
    • A área entre a distribuição das artérias cerebrais anterior e média está em maior risco.
    • Os enfartes desenvolvem-se após uma hipotensão significativa.
Áreas de suprimento sanguíneo duplo indicando enfarte cerebral

Áreas de suprimento duplo e enfartes vistos na RMN:
a: As áreas de suprimento duplo entre os territórios das artérias cerebrais anterior e média são vistas na região azul anterior.
As áreas de suprimento duplo entre os territórios das artérias média e posterior são vistas na região azul posterior.
b: O enfarte da região de suprimento duplo occipital é visto nos limites dos territórios das artérias média e posterior.

Imagem: “Watershed territories” por Clothilde Isabel et al. Licença: CC BY 4.0

Coração

  • No cenário de isquemia severa:
    • A lesão no miocárdio é potencialmente reversível num período de 30 minutos.
    • A viabilidade diminui progressivamente após 30 minutos; a irreversibilidade ocorre 6-12 horas mais tarde.
  • O tecido mais susceptível no coração é o músculo subendocárdico do ventrículo esquerdo.
  • Os danos da isquemia cardíaca levam a:
    • Angina estável:
      • A angina (dor retroesternal) diminui com 15 minutos de descanso ou com a administração de nitroglicerina.
      • Derivado de uma disparidade entre as necessidades miocárdicas de oxigénio e o suprimento de oxigénio.
    • Síndrome coronária aguda:
      • Angina instável ou crescendo: Angina com duração de > 20 minutos em repouso ou com esforço mínimo (os níveis de troponina são normais).
      • Enfarte do miocárdio sem elevação do segmento ST (NSTEMI):
        • Enfarte do miocárdio com angina e aumento das troponinas
        • Não associado à elevação do segmento ST no ECG
      • STEMI: enfarte do miocárdio com angina e elevação do segmento ST no ECG

Rim

  • Vulnerável devido a:
    • Uma quantidade significativa do débito cardíaco (25%) move-se para os rins
    • Fornecimento limitado de sangue colateral de locais extrarrenais
    • Alta atividade metabólica
  • Apresenta enfarte pálido/branco quando ocorrem danos isquémicos
  • A isquemia pode ocorrer em casos de:
    • Hipotensão
    • Sépsis
    • Cirurgia
  • Interrupção por obstrução completa do fornecimento de sangue em caso de:
    • Doença cardioembólica (por exemplo, fibrilhação auricular)
    • Lesão da artéria renal
    • Estados de hipercoagulabilidade
  • Áreas mais afetadas:
    • Túbulos proximais (segmento S3): capacidade mínima para produzir energia em condições anaeróbias
    • A porção grossa do ramo ascendente da ansa de Henle (medular)

Fígado

  • Com uma vasculatura complexa e elevada atividade metabólica, a lesão hepática resulta de uma hipoperfusão grave.
  • Pode ocorrer com uma interrupção do suprimento de sangue para o fígado:
    • Crise hepáticas na drepanocitose
    • Trombose da artéria hepática
    • Outras situações clínicas sistémicas (por exemplo, choque, insuficiência respiratória)
  • Interrupção do suprimento hepático de sangue manifesta-se com:
    • Elevação de transaminases
    • Ocasionalmente com sintomas GI (por exemplo, náuseas, dores abdominais)
  • Muitas vezes acompanhado por hipoperfusão de outros órgãos terminais (por exemplo, isquemia renal que se apresenta como ↑ creatinina)
  • Área mais afetada: zona 3 (área mais próxima da veia central e em torno desta)

Intestino

  • Extensa circulação colateral (proteção contra a hipoperfusão)
  • Mesmo que o fluxo de sangue mesentérico diminua 75% durante um período até 12 horas, a lesão é mínima devido à circulação colateral.
  • Fontes de isquemia:
    • Oclusão arterial mesentérica (trombose ou embolia)
    • Trombose venosa (↑ resistência do fluxo venoso → edema intestinal e isquemia)
    • Isquemia mesentérica não oclusiva (hipoperfusão esplâncnica)
  • Áreas de supriemento duplo (intestino grosso): ângulo esplénico:
    • Fornecimento de sangue a partir dos ramos terminais da artéria mesentérica superior
    • Ponto de Griffiths: área de fragilidade 
  • Junção retossigmóide:
    • Suprimento de sangue a partir dos ramos terminais da artéria mesentérica inferior
    • Ponto de Sudeck: área de fraqueza

Referências

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  4. Kalogeris, T., Baines, C.P., Krenz, M., Korthuis, R.J. (2012). Cell biology of ischemia/reperfusion injury. International review of cell and molecular biology. 298 : p.229–317. doi: 10.1016/B978-0-12-394309-5.00006-7
  5. Kemp, W.L., & Burns, D.K., & Brown, T.G. (Eds.), (2008). Chapter 1. cellular pathology. Pathology: The Big Picture. McGraw Hill. https://accessmedicine.mhmedical.com/content.aspx?bookid=499&sectionid=41568284
  6. Lee, J.M., Grabb, M.C., Zipfel, G.J., Choi, D.W. (2000). Brain tissue responses to ischemia. The Journal of clinical investigation, 106(6), 723–731. https://doi.org/10.1172/JCI11003
  7. Mitchell, R., Connolly, A. (2021). The Heart. In Kumar, V., Abbas, A., Aster, J., Robbins, S. (Eds.),Robbins and Cotran Pathologic Basis of Disease (10th ed., pp. 527–555). Elsevier, Inc.
  8. Oakes, S. (2021). Cell injury, cell death and adaptations. In Kumar, V., Abbas, A., Aster, J., Robbins, S. (Eds.),Robbins and Cotran Pathologic Basis of Disease (10th ed., pp. 55–57). Elsevier, Inc.

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