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Gota

A gota é uma doença metabólica heterogénea associada a níveis elevados de ácido úrico no sangue (> 6,8 mg/dL) e a depósitos anormais de urato monossódico nos tecidos. A patologia é frequentemente familiar e caracteriza-se inicialmente por uma inflamação monoarticular, aguda, dolorosa e recorrente, também designada por crise ("flare"), seguida mais tarde por artrite deformante crónica. Os rins também podem ser afectados e os cristais de urato podem precipitar-se como depósitos semelhantes a calcário (tofos) nos tecidos moles, nos tecidos sinoviais ou nos ossos junto das articulações. A hiperuricémia deve-se a produção excessiva ou diminuição da excreção de ácido úrico e é uma condição prévia necessária mas insuficiente para o desenvolvimento da doença de deposição de cristais de urato (a maioria dos indivíduos hiperuricémicos nunca apresenta sintomas clínicos de gota). A articulação mais frequentemente envolvida é a primeira articulação metatarsofalângica. A identificação de cristais de urato num aspirado articular ou a presença de tofos é diagnóstica. As abordagens terapêuticas mais eficazes no alívio da dor numa crise de gota incluem anti-inflamatórios não esteróides (AINE), colchicina e glicocorticóides; a escolha terapêutica depende do indivíduo e da existência (ou não) de contra-indicações.

Última atualização: Jul 11, 2023

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

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Epidemiologia e Etiologia

Epidemiologia

  • Nos Estados Unidos, a prevalência é de aproximadamente 3%.
  • O risco aumenta com o aumento do índice de massa corporal (IMC): a prevalência é de 1%2% em indivídous com um IMC normal, e é de 5%7% nos indivíduos com obesidade de grau II ou III
  • Os homens na meia-idade e idosos e as mulheres na pós-menopausa são os indivíduos mais frequentemente afectados.
  • Raro na infância, a menos que haja um defeito enzimático congénito ou uma doença maligna

Etiologia

  • A hiperuricémia (valor plasmático > 6,8 mg/dL) é necessária mas não suficiente para o desenvolvimento da gota.
    • Apenas 10% dos indivíduos com hiperuricémia desenvolvem gota.
    • O ácido úrico (AU) elevado pode resultar de excreção reduzida (90%), excesso de produção, ou ambos.
  • A gota pode ocorrer de forma primária ou secundária:
    • Gota primária (90%):
      • Defeitos enzimáticos desconhecidos: geralmente devido à diminuição da excreção de ácido úrico
      • Defeitos enzimáticos conhecidos: por exemplo, síndrome de Lesch-Nyhan e variantes de doenças do défice de hipoxantina-guanina fosforibosiltransferase (devido ao aumento da produção de purina); ou doenças de armazenamento de glicogénio (devido à diminuição da excreção de ácido úrico)
    • Gota secundária (10%):
      • Aumento do turnover de ácidos nucleicos (por exemplo, em leucemias), devido ao aumento da produção de ácido úrico
      • Doença renal crónica (devido à diminuição da excreção de ácido úrico)

Fatores de risco que aumentam os níveis de AU

  • Dietas:
    • Ricas em carne e marisco
    • Bebidas açucaradas à base de fruta/com frutose, álcool
  • Obesidade
  • Condições médicas: hipertensão arterial não tratada, diabetes, síndrome metabólica, doenças cardíacas e renais
  • Alguns medicamentos
    • Diuréticos tiazídicos
    • Ácido acetilsalicílico em baixa dose
    • Medicamentos imunossupressores utilizados no transplante de órgãos
  • História familiar de gota
  • Idade e sexo: maior prevalência em homens de meia-idade ou idosos, ainda que os níveis de AU nas mulheres pós-menopausa sejam semelhantes aos dos homens
  • Cirurgia ou trauma recente
  • Desidratação

Mnemónica

Drogas que promovem aparecimento agudo da gota: FACT

F: Diuréticos de Furosemida

A: Ácido Acetilsalicílico/Álcool

C: Medicamentos anti-cancerígenos (por exemplo, ciclosporina)

T: Diuréticos tiazídicos

Fisiopatologia

  • Os compostos purínicos, sejam eles sintetizados no corpo ou provenientes do consumo de alimentos ricos em purina, podem aumentar os níveis de AU.
  • O ácido úrico é excretado principalmente através dos rins.
  • O aumento da produção ou diminuição da excreção (sendo esta última a causa mais comum) de AU pode levar à hiperuricémia → saturação → deposição de cristais de urato monossódico (UMS) nos tecidos
  • Este UMS deposita no tecido mole e sinovial como cristais de UMS (tofos).
    • Pode afetar o osso, diminuindo a sua densidade, e danificar outros tecidos, como tendões e cartilagens.
    • Causa artrite monoarticular recorrente e artrite deformante crónica
  • A relação precisa entre hiperuricémia e gota não é clara:
    • A maioria (90%) das pessoas com hiperuricémia não tem gota.
    • Níveis normais ou baixos de AU no sangue não excluem gota.
    • No entanto, todos os doentes com gota terão hiperuricémia (> 6,8 mg/dL) algures no tempo, ainda que os níveis possam variar.

Apresentação Clínica

Crises de gota

  • Tipicamente monoarticulares (< 20% são poliarticulares)
  • Ocorre normalmente nas extremidades inferiores, mais frequentemente na base do 1º dedo do pé (primeira articulação metatarsofalângica [MTP], ou podagra) ou no joelho.
  • Sinais inflamatórios exuberantes, cursando com dor intensa, rubor, calor, edema e incapacidade.
  • Pico normalmente em 1224 horas e resolução (mesmo sem tratamento) em 310 dias
  • Início predominantemente noturno

Períodos de gota intercríticos

Após a resolução de uma crise aguda de gota, os doentes passam por um período intercrítico (entre as crises).

  • Na maioria das vezes, é totalmente assintomático
  • Variável em duração
  • Na maioria dos doentes não tratados desenvolver-se-ão crises recorrentes em 2 anos.
  • Os cristais de urato de monossódio podem continuar a depositar-se como tofos em vários tecidos.

Gota tofácea crónica

  • Depósito nodular de cristais de urato monossódico associados a uma inflamação crónica com reação de células gigantes a corpo estranho
  • Encontrados em cartilagens, tecidos subcutâneos e periarticulares, tendões (por exemplo, tendão de Aquiles), na bursa do olecrânio, na hélice auricular, no rim, entre outros
  • Pode causar destruição do osso e dos tecidos moles

Complicações renais associadas

  • Nefrolitíase
  • Nefropatia crónica da ureia

Vídeos recomendados

Diagnóstico

  • O diagnóstico é estabelecido através da microscopia do aspirado articular, que demonstrará:
    • Cristais de UMS, que são negativamente birrefringentes (amarelos quando paralelos ao filtro compensador) e tem uma forma semelhante a agulhas
    • Leucócitos > 2.000/μL com > 50% de neutrófilos (líquido sinovial inflamatório agudo)
  • Raios-X:
    • Sem alterações no início da doença
    • À medida que a doença progride, desenvolvem-se erosões perfuradas com uma borda saliente de osso cortical.
  • Na avaliação laboratorial podem aparecer:
    • Hiperuricémia (que pode estar normal durante uma crise, pelo que deve ser reavaliada às 2 semanas após esta)
    • Leucocitose
    • Elevação da velocidade de sedimentação (VS)
Cristais de urato monossódico em líquido sinovial da articulação do cotovelo - gota

Cristais de urato monossódico, negativamente birrefringentes (aparecendo como cristais amarelos agulhados quando paralelos à luz polarizadora com um compensador vermelho e azuis quando perpendiculares), visualizados à avaliação microscópica do aspirado articular. Este achado é diagnóstico de gota.

Imagem: “Monosodium Urate Crystals in Elbow Joint Fluid” por Ed Uthman. Licença: CC BY 2.0

Tratamento

O tratamento da doença é diferente se trata de doença aguda ou crónica.

Gota aguda/crises

O principal objetivo terapêutico é reduzir a inflamação.

  • Anti-inflamatórios não-esteróides (AINE): são contraindicados se existir úlcera péptica ativa, função renal diminuída, insuficiência cardíaca, ou um INR (“international normalized ratio”) elevado.
  • Colchicina: contraindicada na doença renal ou hepática grave
  • Glucocorticóides: podem ser administrados por via IV, IM, oral ou intra-articular . Deve-se excluir artrite séptica antes de administrar corticosteróides.
  • Os medicamentos hipouricemiantes (alopurinol e febuxostat) são geralmente contraindicados/não recomendados numa crise aguda, dado poderem precipitar a doença.
Algoritmo de abordagem de uma crise de gota

Algoritmo de abordagem de uma crise de gota

Imagem de Lecturio.

Gota crónica

O objectivo da abordagem terapêutica é minimizar a deposição de urato nos tecidos.

Medidas gerais

  • Perda de peso, procurando atingir IMC < 25
  • Evitar alimentos com alto teor de purina (por exemplo, marisco, carne, álcool [varies among different beverages])
  • Evitar medicamentos hiperuricemiantes
    • Os diuréticos aumentam a reabsorção de urato e diminuem a sua secreção.
    • O alopurinol é frequentemente administrado para controlar a gota se o doente tiver necessidade de tomar um diurético.

Tratamento médico

  • Indicações para iniciar o tratamento medicamentoso de gota crónica são as seguintes: crises recorrentes (> 1/ano), tofos, ou cálculos renais de urato.
  • Medicamentos hipouricemiantes (alopurinol e febuxostat) diminuem a produção de ácido úrico, inibindo a xantina oxidase (uma enzima envolvida na síntese endógena da purina).
  • Os medicamentos uricosúricos (probenecid) raramente são usados.
  • Deve ser prescrita colchicina profilática/AINE antes de iniciar tratamento com medicamentos hipouricemiantes para evitar crises.
  • Novas abordagens medicamentosas: a pegloticase, uma peguilase recombinante (ou seja, ligada à metoxi polietilenoglicol) uricase.
Diagrama de abordagem da gota

Resumo da fisiopatologia e dos fármacos utilizados para o tratamento da gota

Imagem de Lecturio.

Diagnóstico Diferencial

As seguintes patologias são diagnósticos diferenciais de gota:

  • Artrite séptica: infecção de uma articulação com uma contagem extremamente alta de leucócitos no líquido sinovial (> 100.000 células/mL) apoia o diagnóstico de artrite séptica. Para o diagnóstico realiza-se uma colheita do líquido sinovial com coloração de Gram e cultura.
  • Doença da deposição de cristais de pirofosfato de cálcio (DPPC, pseudogota): cristais do líquido sinovial positivamente birrefringentes. A doença da deposição de cristais de pirofosfato de cálcio tem também como achado radiográfico característico o aspeto de condrocalcinose.
  • Trauma: uma fratura de stress ou um processo traumático no osso ou na articulação pode mimetizar uma crise de gota.
  • Celulite: uma infecção bacteriana da pele comum e dolorosa, que afecta as camadas mais profundas da derme e do tecido subcutâneo. Estão presentes sinais típicos de inflamação aguda (rubor, dor, calor, torpor), mas a mobilidade articular está geralmente preservada.
  • Artrite reumatóide: uma poliartrite inflamatória autoimune. Podem-se confundir os tofos com nódulos reumatóides, mas a apresentação clínica e imagiológica, bem como a ausência de cristais nos nódulos, podem distinguir as 2 patologias.
  • Dactilite: inflamação bacteriana grave das articulações dos dedos e dos pés que pode mimetizar gota tofácea agudizada. Esta doença pode ser distinguida da gota com base na história pregressa e nos achados do exame objetivo.
  • Osteomielite: uma infecção (geralmente bacteriana) do osso. O diagnóstico é feito pela existência de dor óssea profunda e sinais clínicos sugestivos de inflamação sistémica aguda; um hemograma e a ressonância magnética (RM) são úteis quando os restantes achados radiológicos não permitem o diagnóstico definitivo.
  • Doença por depósito de cristais de fosfato básico de cálcio (FBC) (hidroxiapatita [HA] doença de deposição de cristais): periartrite ou artrite dolorosa e provavelmente subdiagnosticada que ocorre devido à deposição de cristais de FBC no líquido sinovial. Pode causar lesões articulares graves, como as observáveis na síndrome do ombro de Milwaukee, que ocorre principalmente em mulheres idosas.

Referências

  1. Horvai H. (2020). In Kumar, V., Abbas, A. K., Aster, J.C., (Eds.), Robbins & Cotran Pathologic Basis of Disease. (10 ed., pp. 12046). Elsevier, Inc.
  2. Juraschek SP, Miller ER 3rd, Gelber AC. Body mass index, obesity, and prevalent gout in the United States in 19881994 and 2007-2010. Arthritis Care Res (Hoboken). 2013 Jan;65(1):12732.
  3. Gaffo AL. (2019). Clinical manifestations and diagnosis of gout. Retrieved on August 31, 2020, from https://www.uptodate.com/contents/clinical-manifestations-and-diagnosis-of-gout#H87540416
  4. Schumacher HR, Chen LX. (2018). In Jameson JL, et al. (Ed.), Harrison’s Principles of Internal Medicine (20ª ed.. Vol 2, pp. 26312633).
  5. Le T, Bhusan V, Sochat M, et al (Eds.) (2020). First Aid for the USMLE Step 1, 30th ed. (p. 467).

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