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Doença Celíaca

A doença celíaca (também conhecida como sprue celíaco ou enteropatia por glúten) é uma reação autoimune à gliadina, que é um componente do glúten. A doença celíaca está intimamente associada ao HLA-DQ2 e ao HLA-DQ8. A resposta imune está localizada no intestino delgado proximal e causa os achados histológicos característicos de atrofia das vilosidades, hiperplasia das criptas e linfocitose intraepitelial. Os doentes geralmente apresentam diarreia e sintomas relacionados com a má absorção (esteatorreia, perda de peso e défices nutricionais). Os doentes fazem rastreio através de testes serológicos de anticorpos e o diagnóstico é confirmado por biópsia do intestino delgado. O tratamento requer uma dieta sem glúten ao longo da vida.

Última atualização: Jan 16, 2024

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

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Epidemiologia e Etiologia

Epidemiologia

  • Previamente pensava-se que afetava sobretudo leucodérmicos de ascendência europeia, mas tem sido casa vez mais diagnosticada no Norte de África, Médio Oriente e Ásia
  • Prevalência mundial: aproximadamente 1%
  • Mais comum em mulheres
  • Distribuição etária bimodal, mas mais comum na infância:
    • 8 a 12 meses de idade
    • 3ª a 4ª décadas de vida
  • A história familiar é positiva em 10%‒15% dos doentes.
  • 99% dos indivíduos com doença celíaca tem HLA-DR3-DQ2 e/ou HLA-DR4-DQ8
  • A doença celíaca está associada a:
    • Síndrome de Down
    • Risco moderadamente aumentado de linfoma do intestino delgado
    • Doença tiroideia autoimune
    • Diabetes tipo 1

Etiologia

Fatores ambientais, imunológicos e genéticos contribuem para o processo da doença:

  • Ambiental
    • Desencadeado pela gliadina, que é um componente do glúten (encontrado no trigo, cevada e centeio)
    • A única doença autoimune em que o antigénio é conhecido
  • Imunológico
    • Envolve tanto a resposta imune inata quanto a adaptativa (reação de hipersensibilidade tipo 4)
    • Autoanticorpos:
      • Imunoglobulina A (IgA) antitransglutaminase tecidual
      • Antiendomísio
      • Peptídeo de gliadina antidesamidado
  • Genética: associada ao HLA-DR3-DQ2 e ao HLA-DR4-DQ8

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Fisiopatologia

Os peptídeos de glúten desencadeiam a resposta imune inata nas células epiteliais intestinais, levando a danos na mucosa mediados por células T do intestino delgado proximal (duodeno distal e jejuno proximal).

  1. Presença de gliadina → libertação de transglutaminase tecidual (tTG) (enzima intracelular) → gliadina desaminada
  2. Células apresentadoras de antigénio processam e apresentam isso às células T → Ativação da célula T auxiliar e de plasmócitos
  3. As células plasmáticas libertam anticorpos anti-tTG, antiendomísio e antigliadina desamidada.
  4. Células T auxiliares → libertação de citocinas → linfocitose intraepitelial e ativação de fibroblastos → proteases da matriz → destruição intestinal, incluindo perda da bordadura em escova, hiperplasia das criptas e atrofia das vilosidades
  5. Este processo causa uma alteração na absorção de gordura, vitaminas lipossolúveis e minerais → má absorção
Resumindo a fisiopatologia da doença celíaca

Fisiopatologia da doença celíaca

Imagem por Lecturio.

Apresentação Clínica

Manifestações clínicas

A doença celíaca pode apresentar-se na infância ou na 3ª a 4ª décadas de vida.

  • Sintomas gastrointestinais (GI):
    • Diarreia (sintoma mais comum)
    • Esteatorreia (fezes volumosas, fétidas e flutuantes)
    • Distensão abdominal e flatulência
    • Cólica abdominal
  • Manifestações extraintestinais:
    • Perda de peso e perda de massa muscular
    • Fadiga e fraqueza
    • Má progressão estaturo-ponderal em bebés e crianças
    • Alteração da absorção de ferro e folato → anemia
    • Défice na absorção de vitamina K (lipossolúvel) → défice de protrombina → diátese hemorrágica
    • Alteração do transporte de cálcio e da absorção de vitamina D (lipossolúvel) → osteopenia
    • Hipocalcemia e défices vitamínicos → fraqueza motora, parestesias, perda sensorial
    • Dermatite herpetiforme (pápulas, vesículas e bolhas pruriginosas na superfície extensora dos membros)
    • Glossite atrófica, lesões da mucosa oral
    • Absorção deficiente de aminoácidos → edema periférico
    • Amenorreia, menarca tardia e infertilidade
    • Perda de massa óssea, ↑ risco de fraturas causadas por défice de vitamina D
Tabela: Manifestações e achados laboratoriais da síndrome de má absorção
Manifestações Achado laboratorial
Esteatorreia (fezes volumosas, fétidas e de cor clara) Aumento da gordura fecal devido à má absorção de gordura
Diarreia (aumento do conteúdo fecal) Aumento do gap osmolar das fezes devido à presença de gorduras e carboidratos não absorvidos
Perda de peso/má progressão estaturo-ponderal/perda de massa muscular Diminuição da absorção de D-xilose devido à incapacidade de absorver qualquer conteúdo alimentar
Hemorragia/equimoses repetidas TP/INR prolongado (tempo de protrombina/rácio internacional normalizado) devido à incapacidade de absorver vitamina K
Anemia microcítica Baixa ferritina devido à incapacidade de absorver ferro
Anemia macrocítica B12 sérica ou ácido fólico baixos devido à incapacidade de absorver vitamina B12 e B9
Dor óssea/fraturas em trauma mínimo Osteopenia em filme simples e osteoporose em DEXA (absorciometria de raios X de dupla energia) devido à incapacidade de absorver cálcio e vitamina D
Intolerância ao leite Teste de tolerância à lactose anormal devido à incapacidade de absorver a lactose
Edema Proteínas séricas e albumina diminuídas devido à incapacidade de absorver aminoácidos da dieta
Lesões cutâneas da doença celíaca

Erupção cutânea da dermatite herpetiforme a envolver a superfície extensora dos antebraços, mãos e membros inferiores num doente com doença celíaca

Imagem: “Skin lesions on dorsum of hand and legs” por Department of Surgery, The Aga Khan University Hospital (Stadium Road), Karachi (74800), Pakistan. Licença: CC BY 3.0

Doenças associadas

A doença celíaca também está associada a:

  • Diabetes mellitus
  • Alteração seletiva de imunoglobulina A (IgA)
  • Doenças autoimunes da tiroide
  • Doença do refluxo gastroesofágico
  • Doença inflamatória intestinal e colite microscópica
  • Miocardite autoimune
  • Cardiomiopatia dilatada idiopática

Diagnóstico

Avaliação diagnóstica

  • 1º, uso de teste serológico para rastreio de suspeita de doença celíaca:
    • Autoanticorpos
      • Anticorpo transglutaminase tecidual IgA (98% de sensibilidade e especificidade)
      • Anticorpo antiendomísio IgA
    • Anticorpos direcionados à gliadina
      • Anticorpo antigliadina
      • Peptídeo de gliadina desamidada IgA
    • Níveis totais de IgA
      • Exclui o défice de IgA, visto que isso influencia a veracidade dos testes acima
      • Se for detetado défice de IgA, deve realizar-se o teste baseado em IgG.
    • Teste baseado em IgG
      • Transglutaminase tecidual IgG
      • Peptídeo de gliadina desamidado de IgG
  • Se o teste serológico for positivo: endoscopia digestiva alta com biópsia do intestino delgado
    • Características endoscópicas: mucosa atrófica, fissuras, pregas serrilhadas, vascularização submucosa
    • Histologia: aumento de linfócitos intraepiteliais, hiperplasia de criptas e atrofia das vilosidades
    • Uma biópsia normal exclui o diagnóstico de doença celíaca.
  • Se existir discrepância entre os achados da serologia e da histologia: tipagem HLA-DQ2/DQ8
    • Se negativa, exclui a doença celíaca e deve-se explorar um diagnóstico alternativo.
    • Se positiva, realizar uma dieta rica em glúten com endoscopia e biópsia de acompanhamento.

Avaliação da má absorção

  • Eletrólitos
    • Hipocaliemia
    • Hipocalcemia
    • Hipomagnesemia
  • ↓ Albumina
  • ↓ Colesterol
  • ↓ Hemoglobina
  • ↑ INR, tempo de tromboplastina parcial (pela sigla em inglês, PTT)
  • ↓ Ferro, ferritina
  • ↓ Vitamina B 12
  • ↓ Folato
  • ↑ Gordura fecal

Tratamento e Prognóstico

Tratamento

  • Educação sobre a doença
  • Dieta sem glúten ao longo da vida
    • Consulta com um nutricionista
    • Evitar cevada, centeio e trigo.
    • Muitos terão uma intolerância secundária à lactose.
    • Aproximadamente 70% dos doentes terão melhoria clínica em 2 semanas.
  • Monitorização:
    • Repetir o anticorpo IgA antitransglutaminase tecidual aos 6 e 12 meses após o diagnóstico.
    • Biópsia do intestino delgado após 3-6 meses de dieta sem glúten
  • Identificar e tratar quaisquer alterações nutricionais (suplementos vitamínicos e minerais, conforme necessário).
  • A razão mais comum para a falha do tratamento é a remoção incompleta do glúten da dieta.
  • Doença refratária:
    • 5% dos doentes podem não responder a uma dieta sem glúten.
    • Considerar uma doença alternativa ou concomitante:
      • Síndrome do intestino irritável
      • Sobrecrescimento bacteriano do intestino delgado
      • Insuficiência pancreática
      • Colite microscópica
    • Podem ser considerados glicocorticoides e imunossupressores.

Prognóstico

  • Excelente prognóstico para aqueles que respondem ao tratamento
  • Complicações associadas ao aumento da mortalidade:
    • Aumento do risco de linfoma e cancro GI
      • 6%–8% de doentes
      • Manifesta-se após 20-40 anos com a doença
    • Sprue colagenoso
      • Doença refratária com deposição subepitelial de colágeno
      • Leva a má absorção grave
    • Jejunite ulcerativa
      • Monoclonalidade aberrante de células T causando múltiplas úlceras crónicas no jejuno
      • Pode levar à obstrução intestinal devido a estenoses

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Diagnóstico Diferencial

  • Síndrome do intestino irritável (SII): doença intestinal funcional que se apresenta com dor abdominal recorrente e hábitos intestinais alterados. A síndrome do intestino irritável é um diagnóstico de exclusão e a doença celíaca deve ser excluída com uma transglutaminase tecidual IgA negativa. O tratamento inclui tranquilizar o doente, modificações na dieta e medidas de controlo dos sintomas.
  • Doença inflamatória intestinal (DII): inclui doença de Crohn e colite ulcerosa, sendo caracterizada por inflamação crónica do trato GI devido a uma resposta imune mediada por células à mucosa GI. Os sintomas incluem diarreia, dor abdominal, perda de peso e manifestações extraintestinais. O diagnóstico necessita de estudo imagiológico, endoscopia e biópsia. A serologia para anticorpos celíacos será negativa. O tratamento envolve esteroides, aminossalicilatos, imunomoduladores e agentes biológicos.
  • Pancreatite crónica: inflamação persistente, fibrose e dano celular irreversível no pâncreas. O álcool e a obstrução biliar são causas comuns. Os doentes podem apresentar esteatorreia, dor abdominal e outros sintomas de má absorção. A imagem mostrará um pâncreas atrófico, ductos dilatados e calcificações. O teste de anticorpos da doença celíaca será negativo. A terapêutica inclui cessação do álcool, alterações na dieta, controlo da dor e tratamento da insuficiência pancreática.
  • Intolerância à lactose: intolerância a alimentos contendo lactose devido ao défice de lactase. Os sintomas incluem dor abdominal em cólica, distensão abdominal, náusea e diarreia. O diagnóstico é baseado na associação com alimentos contendo lactose e um teste respiratório de intolerância à lactose. O tratamento inclui restrição de lactose na dieta e reposição enzimática. É comum que doentes com doença celíaca também tenham intolerância à lactose concomitante.
  • Sobrecrescimento bacteriano do intestino delgado: definido como crescimento excessivo de bactérias no intestino delgado e pode resultar da alteração na anatomia ou motilidade intestinal. Os sintomas podem variar de levemente sintomáticos a diarreia crónica, perda de peso e má absorção. Culturas bacterianas e testes respiratórios podem distinguir esta condição da doença celíaca. O tratamento inclui antibióticos e correção de alterações nutricionais.
  • Colite microscópica: uma doença inflamatória crónica do cólon; pode ser classificada como colite colagenosa ou linfocítica. Os doentes tendem a ser de meia-idade com diarreia aquosa crónica; dor abdominal; e distensão abdominal. A colonoscopia parecerá normal, mas na biópsia serão vistas células inflamatórias, criptite ou uma banda de colagénio subepitelial, diferenciando a condição da doença celíaca. O tratamento inclui evitar desencadeantes, glicocorticoides e controlo dos sintomas.

Referências

  1. Schuppan, D., and Dieterich, W. (2020). Epidemiology, pathogenesis, and clinical manifestations of celiac disease in adults. In Grover, S. (Ed.). Uptodate. Retrieved November 17, 2020, from https://www.uptodate.com/contents/epidemiology-pathogenesis-and-clinical-manifestations-of-celiac-disease-in-adults
  2. Kelly, C.P. (2020). Diagnosis of celiac disease in adults. In Grover, S. (Ed.). Uptodate. Retrieved November 17, 2020, from https://www.uptodate.com/contents/diagnosis-of-celiac-disease-in-adults
  3. Ciclitira, P.J. (2020). Management of celiac disease in adults. In Grover, S. (Ed.). Uptodate. Retrieved November 17, 2020, from https://www.uptodate.com/contents/management-of-celiac-disease-in-adults
  4. Goebel, S.U. (2019). Celiac disease (sprue). In Anand, B.S. (Ed.). Medscape. Retrieved November 17, 2020, from https://emedicine.medscape.com/article/171805-overview
  5. Ruiz, Jr., A.R. (2019). Celiac disease (gluten enteropathy). [online] MSD Manual Professional Version. Retrieved November 17, 2020, from https://www.msdmanuals.com/professional/gastrointestinal-disorders/malabsorption-syndromes/celiac-disease

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