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Desnutrição em Crianças em Países com Recursos Limitados

A desnutrição consiste num estado clínico causado pelo desequilíbrio ou deficiência de calorias e/ou micronutrientes e macronutrientes. As 2 principais manifestações da desnutrição aguda e grave são, o marasmo (insuficiência calórica total) e o kwashiorkor (má-nutrição proteica associada a edema característico). Habitualmente, a desnutrição associa-se a um processo patológico subjacente, que pode ser classificado em 4 categorias: diminuição da ingestão de nutrientes, diminuição da absorção de micronutrientes e macronutrientes, aumento da perda de nutrientes e aumento das necessidades energéticas. A apresentação clínica do marasmo varia de acordo com a gravidade, duração da restrição calórica e deficiências de vitaminas/minerais. A apresentação clínica do kwashiorkor inclui edema periférico depressível, atrofia muscular e distensão abdominal. No diagnóstico da desnutrição é essencial a antropometria. O tratamento da desnutrição consiste na abordagem em 3 etapas, que inclui a ressuscitação, reabilitação e prevenção de recaídas.

Última atualização: Jul 7, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

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Descrição Geral

Definição

A desnutrição consiste num estado clínico em que ocorre desequilíbrio, deficiência ou excesso de vários nutrientes e energia.

  • Marasmo:
    • Ingestão inadequada de calorias/nutrientes
    • Relação peso/altura baixa (<3 desvios padrão da média para a idade)
    • Perda de massa muscular e de tecido adiposo
  • Kwashiorkor:
    • Deficiência proteica
    • Habitualmente, a ingestão de calorias é suficiente (dieta compensada)
    • Achado clássico: edema devido à perda da pressão oncótica intravascular
Tipos de desnutrição

Duas formas de desnutrição aguda grave: desnutrição não edematosa (marasmo) e edematosa (kwashiorkor)

Imagem: “Clinical picture” do Department of Nutrition, Exercise and Sports, Faculty of Science, University of Copenhagen, Frederiksberg, Denmark. Licença: CC BY 4.0

Epidemiologia

  • Prevalência global da desnutrição aguda:
    • Desnutrição moderada: 32,7 milhões de crianças
    • Emagrecimento grave: 14,3 milhões de crianças com < 5 anos
  • Ocorre principalmente em regiões com recursos limitados (por exemplo, sul da Ásia e África Subsariana)

Etiologia

A desnutrição está frequentemente associada a doenças subjacentes e pode ser categorizada, em termos conceituais, em 4 categorias etiológicas gerais:

  • Diminuição da ingestão:
    • Falta de disponibilidade
    • Falta de acesso (por exemplo, dificuldade física para alcançar e mastigar os alimentos)
  • Diminuição da absorção de micronutrientes/macronutrientes (má absorção):
    • Diarreia crónica
    • Redução da área de superfície do intestino delgado
  • Aumento da perda e/ou alterações das necessidades energéticas:
    • Gravidez
    • Fístula enterocutânea
  • Aumento do gasto energético:
    • Estados hipermetabólicos (hipertiroidismo)
    • Patologias específicas (por exemplo, queimaduras extensas, disfunção cardíaca e traumatismos cranianos)

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Apresentação Clínica

Alterações patológicas causadas pela desnutrição

  • A taxa metabólica basal ↓ em 30%
  • ↓ Síntese de proteínas
  • Disfunção da bomba sódio-potássio → aumento do sódio intracelular
  • Alterações endócrinas:
    • ↓ Produção de insulina
    • ↓ Produção do fator de crescimento semelhante à insulina (IGF, pela sigla em inglês)
    • ↑ Produção de cortisol

Apresentação clínica do marasmo

A apresentação clínica varia de acordo com a gravidade, duração da restrição calórica e presença de deficiências de vitaminas/minerais.

Os doentes apresentam-se com:

  • Má progressão no crescimento:
    • Peso baixo para a altura
    • Circunferência do braço médio-superior (MUAC, pela sigla em inglês) reduzida
  • Perda de tecido adiposo:
    • Começa na virilha ou axila → nádegas, face e coxa
    • Aparência geral: enrugado e desgastado
  • Sinais exclusivamente observados em lactentes:
    • Fontanela deprimida (desidratação)
    • Irritabilidade
    • Apatia/sonolência
  • Sintomas de marasmo associados a deficiências de vitaminas/minerais:
    • Deficiência de vitamina A: xeroftalmia e manchas de Bitot
    • Deficiência de ferro e anemia: unhas de colher (coiloníquia)
    • Hipocalcemia: hiperreflexia
      • Sinal de Chvostek: contração dos músculos faciais em resposta à percussão na região do nervo facial.
      • Sinal de Trousseau: espasmo carpopedal causado pela insuflação do manguito do esfigmomanómetro para valores superiores aos da pressão sistólica durante 3 minutos
  • Deficiência de cálcio e vitamina D: deformidades ósseas, incluindo raquitismo e/ou osteomalácia
  • Marasmo de longa duração:
    • Interrupção do crescimento
    • Sintomas de anemia e raquitismo
    • Comprometimento da função cardiovascular → hipotensão, hipotermia e bradicardia
Pontos bitot

Manchas de Bitot resultantes da deficiência de vitamina A

Imagem: “Bitot spots” do Professor of Ophthalmology, College of Medicine, University of Ibadan, Nigeria. Licença: CC BY 2.0

Apresentação clínica do kwashiorkor

Os doentes apresentam:

  • Edema periférico depressível:
    • Edema dependente da gravidade: começa nas extremidades inferiores com progressão cefálica
    • Simétrico
  • Atrofia muscular significativa
  • Distensão abdominal (com ou sem dilatação das ansas intestinais e hepatomegalia)
  • Face redonda com bochechas proeminentes
  • Alterações na pele:
    • Xerose cutânea
    • Pele fina
    • Descama facilmente
    • Áreas confluentes de descamação e hiperpigmentação
    • Lesões e dermatite no períneo, virilha, membros, orelhas e axilas
  • Alterações no cabelo:
    • Secura
    • Hipopigmentação
    • Cai/fácil de arrancar
  • Atraso no crescimento
  • A acumulação de gordura no tecido subcutâneo é acompanhada por dobras cutâneas soltas na região inguinal interna.
Apresentação kwashiorkor

Criança com kwashiorkor: A ascite leva à distensão abdominal.

Imagem: “Kwashiorkor” de Av TKnoxB/Flickr. Licença: CC BY 2.0

Diagnóstico

Desnutrição

O uso da antropometria precisa é essencial para o diagnóstico de desnutrição:

  • Precisão do comprimento vertical: 0,5 cm
  • Precisão do peso: 100 g
  • Precisão da MUAC (pela sigla em inglês): 2 mm ou menos

Exames laboratoriais a considerar:

  • Hemoglobina e hemograma
  • Esfregaço de sangue periférico
  • Glicemia
  • Albumina sérica
  • Exame microscópico das fezes e coprocultura (incluindo óvulos e ovos)
  • Exame microscópico da urina e urocultura
  • Serologias para o VIH
  • Estudo da cinética do ferro
  • Níveis de ácido fólico
  • Níveis da vitamina B12

Marasmo

O diagnóstico é feito se:

  • MUAC (pela sigla em inglês) < 115 mm OU
  • Z score do peso pela altura > 3 desvios padrão abaixo da média
  • Investigar a presença de edema depressível para excluir kwashiorkor.

Kwashiorkor

  • MUAC (pela sigla em inglês) baixa
  • Edema depressível e simétrico
  • Outros critérios de diagnóstico para kwashiorkor:
    • Hipopigmentação capilar
    • Queilose
    • Dermatite

Tratamento

Abordagem por etapas

Dividido em 3 etapas principais:

  1. Ressuscitação e estabilização do indivíduo (aproximadamente 1 semana):
    • Objetivos:
      • Tratamento e prevenção da desidratação e correção de desequilíbrios eletrolíticos:
        • No soro fisiológico os níveis de sódio são muito elevados e os de potássio são muito baixos.
        • ReSoMal (REhydration SOlution for MALnutrition — Solução de reidratação para a desnutrição) é uma solução personalizada, administrada por via oral ou através de uma sonda nasogástrica, que contém a quantidade exata de eletrólitos, minerais, água e açúcar que são necessários.
      • Tratamento e prevenção da infeção:
        • Os doentes podem apresentar ausência de uma resposta evidente à sépsis.
        • Nos doentes com suspeita de infeção devem ser administrados antibióticos.
      • Tratamento e prevenção da hipotermia
    • Prevenção da síndrome de realimentação:
      • A realimentação deve ser realizada a um ritmo lento e com uma ingestão calórica entre 60% e 80% das necessidades específicas para a idade.
      • A síndrome de realimentação pode levar a hipoglicemia: recomendar a alimentação por via nasogástrica contínua ou refeições em pequena quantidade à noite para evitar as hipoglicemias.
      • Administrar tiamina e fosfato oral para prevenir a hipofosfatemia.
  2. Reabilitação nutricional (2–6 semanas):
    • A ingestão calórica pode ser aumentada para 120%–140% das necessidades específicas para a idade.
    • Administrar as vacinas necessárias.
    • Incentivar o aumento da atividade motora.
    • O vínculo mãe/filho é benéfico para reverter o atraso no desenvolvimento e promover a estimulação sensorial e o apoio emocional.
  3. Acompanhamento e prevenção da recorrência:
    • Educar o cuidador (sobretudo no que diz respeito à amamentação e alimentação suplementar).
    • É fundamental o controlo de doenças infecciosas e o fornecimento contínuo da nutrição adequada e de água potável.

Considerações-chave:

  • No kwashiorkor um dos problemas significativos é o desequilíbrio de fluidos:
    • Reidratar atentamente.
    • A reidratação agressiva pode causar insuficiência cardíaca aguda e hipovolemia grave, com consequente choque e morte.
  • Num lactente com < 6 meses, uma MUAC (pela sigla em inglês) < 110 mm está altamente associada com a mortalidade.

Complicações

Síndrome de realimentação

  • Nos doentes desnutridos, os eletrólitos intracelulares/extracelulares e os níveis de fluidos são anormais.
  • A alimentação e a hidratação quando realizadas de forma muito rápida causam alterações inesperadas nos fluidos e eletrólitos.
  • Características da síndrome de realimentação:
    • Edema
    • Convulsões
    • Rabdomiólise
    • Hipofosfatemia
    • Hipocaliemia

Complicações cardíacas e pulmonares

  • Redução da massa muscular cardíaca → diminuição do débito cardíaco → diminuição da perfusão renal e da taxa de filtração glomerular
  • Enfraquecimento da função da musculatura diafragmática e da respiração → redução da pressão da tosse e diminuição da mobilização de secreções → atraso na recuperação de infeções do trato respiratório

Complicações gastrointestinais

  • Insuficiência pancreática
  • Alteração da permeabilidade intestinal, arquitetura das vilosidades e fluxo sanguíneo intestinal:
    • A secreção de iões e líquidos ocorre no intestino delgado e grosso.
    • O cólon perde a capacidade de reabsorver a água e os eletrólitos.
  • Leva à diarreia → alta taxa de mortalidade em doentes com desnutrição grave
  • Os doentes podem desenvolver íleo paralítico, deficiência de lactase ou supercrescimento bacteriano, que pode progredir para septicemia e morte.

Imunidade e cicatrização de feridas

  • Verifica-se prejuízo da imunidade mediada por células e alteração da função das citocinas, complemento e fagócitos → aumento do risco de infeção
  • O atraso na cicatrização de feridas é observado em doentes cirúrgicos desnutridos.

Impacto psicossocial

  • Apatia
  • Depressão
  • Negligência de si próprio
  • Ansiedade

Diagnóstico Diferencial

  • Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH): vírus RNA de cadeia simples, transmitido sexualmente ou por contacto sangue com sangue. O vírus ataca os linfócitos T CD4, macrófagos e células dendríticas, levando à imunodeficiência. A apresentação clínica é marcada por sintomas constitucionais, como linfadenopatias e febre. Está recomendado o tratamento imediato com terapia antirretroviral combinada.
  • Doença inflamatória intestinal: patologia intestinal crónica dividida em doença de Crohn e colite ulcerosa. A doença de Crohn (DC) é uma patologia crónica e recorrente que causa inflamação transmural e irregular, podendo envolver qualquer parte do trato GI. A colite ulcerosa (CU) é uma patologia inflamatória idiopática que envolve a superfície da mucosa do cólon. As manifestações extraintestinais da DC incluem a formação de cálculos renais de oxalato de cálcio, litíase biliar, eritema nodoso e artrite. As manifestações extraintestinais da colite ulcerosa incluem colangite esclerosante primária, inflamação ocular, ulceras orais e eritema nodoso.
  • Síndrome nefrótica: vasta categoria de patologias glomerulares caracterizadas por proteinúria grave, hipoalbuminemia, edema e dislipidemia. A apresentação clínica da síndrome nefrótica inclui edema (periférico e periorbital), urina espumosa (lipidúria por dislipidemia), hipoalbuminemia e vários graus de disfunção renal. O tratamento varia com a etiologia e, habitualmente, envolve glucocorticoides.
  • Pancreatite: inflamação persistente, fibrose e dano celular irreversível no pâncreas, secundário a múltiplas etiologias (por exemplo, neoplasia, infeção e alcoolismo), resultando na perda da sua função glandular endócrina e exócrina. Normalmente, os doentes apresentam dor abdominal epigástrica recorrente, náuseas e achados compatíveis com síndrome de má absorção (por exemplo, diarreia, esteatorreia e perda ponderal). O tratamento consiste na cessação do consumo de álcool, mudanças dietéticas, controlo da dor e no tratamento da insuficiência pancreática.

Referências

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